Unger, Pragmatismo Romântico e Democracia Radical

Crisóstomo de Souza

1 – Rorty, Unger e o Romance de um Futuro Nacional

Roberto Mangabeira Unger é talvez o mais importante filósofo brasileiro dos nossos dias. E possivelmente o mais interessante e provocativo – a julgar pelo seu The Self Awakened: Pragmatism Unbound (O Eu Despertado: Pragmatismo sem Peias), de 2007, ainda não publicado em português. Professor em Harvard desde os anos 1970, com uma obra extensa e respeitável, com uma audiência global, lido por gente como Perry Anderson, Jürgen Habermas e Richard Rorty, ele é principalmente uma referência capital no cenário intelectual e acadêmico norte-americano, nas áreas do direito e da teoria social e política. Unger produziu até aqui, avalia Geoffrey Hawthorn, nada menos do “que poderia ser a mais poderosa teoria social da segunda metade do séc. XX”. Não é pouca coisa; trata-se de “uma cabeça filosófica saída do Terceiro Mundo para se tornar profeta do Primeiro”, acrescenta Perry Anderson, para quem Unger “faz parte da constelação de intelectuais do Terceiro Mundo ativa e respeitada no Primeiro, sem ter sido assimilada por este”. Ele tem mais a ver com o Brasil do que isso, porém, e não apenas por ter sido ministro para assuntos estratégicos, do governo brasileiro, de 2007 a 2009. No Política: Um Trabalho de Teoria Social Construtiva, de 1987, Roberto Mangabeira Unger já se mostra um pensador que, mesmo residindo num outro país, pensa o Brasil e a partir do Brasil – tanto quanto a partir do mundo mais amplo (para além do Atlântico Norte) e diversificado, pós-colonial, ora emergente. “Um homem cuja cabeça está em outro lugar”, “um filósofo brasileiro” empenhado no “romance de um futuro nacional” – como o vê Richard Rorty, num ensaio cheio de terna simpatia pelo projeto. No Política, Unger encara a “instabilidade exemplar do Terceiro Mundo” e, dentro dela, “o exemplo brasileiro”, como prenhes de possibilidades, frente à relativa falta de perspectiva do Norte desenvolvido. E ele o faz – bem percebe Rorty – à maneira poética de Walt Whitman, que, no séc. XIX, contrastava romanticamente a promessa de uns Estados Unidos ainda por fazer, com uma Europa morna e já realizada, voltada para o passado. Unger, analogamente, caracteriza agora “a cultura do pensamento social e histórico” do Atlântico Norte como “alexandrina” e “decadente”, em contraste com um Hemisfério Sul obrigado a ser original e inventivo, mesmo que apenas para alcançar algumas das conquistas do Primeiro Mundo. Ele ouve soar no Brasil, apesar de tudo, “a voz de uma oportunidade transformadora”, em que homens e mulheres poderiam encarar a luta política como “participação num experimento exemplar”, que configura “outras opções possíveis para a humanidade”. Essa é a visão que Mangabeira Unger sustenta, do mundo e do Brasil, enquanto procura criticar e ultrapassar, já a partir de Conhecimento e Política, de 1975, as limitações dos conceitos e instituições democrático-liberais tradicionais, em prol do que ele concebe como uma democracia viva e transformadora, animada por indivíduos criativos e rebeldes, para além da social democracia e dos “determinismos estruturais” do marxismo.

2 – Um Filósofo Brasileiro – “Neodesenvolvimentista” – de Ultramar

Mangabeira Unger
Mangabeira Unger

Nascido no Brasil, de mãe baiana e pai alemão-americano, Roberto Mangabeira Unger formou-se em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, para tornar-se em seguida aluno e logo professor da Universidade de Harvard. E parece ter herdado traços tanto do talento poético da mãe quanto da vocação política do avô materno, que foi governador e senador da Bahia. Ele veio mesmo a ser um filósofo que quer transformar o mundo, e para isso tem se engajado e ao seu pensamento, na prática, de diversas maneiras. Reconhecível ao público brasileiro principalmente como homem político e por seu sotaque americano, Unger, embora permaneça entre nós pouco conhecido como pensador e menos ainda como pragmatista e deweyano, pode ser considerado como um “filósofo brasileiro de ultramar”. O que não haveria de representar um problema, em comparação com o que em geral tem sido a filosofia no Brasil nas últimas décadas. Pois, constituído por professores brasileiros sem sotaque estrangeiro, o Departamento de Filosofia da USP, por exemplo, que se tornou matriz formadora da filosofia acadêmica brasileira, já foi apelidado, ao reverso, de “departamento francês de ultramar”. E, nesse caso, pode-se acrescentar, como resultado de uma importação sem muita “transferência de tecnologia”, pois aprendemos com os franceses, não a fazer filosofia, que isso ficou para eles próprios, mas a estudar exaustivamente os grandes filósofos europeus, históricos, infelizmente quase que apenas como seus eternos – competentes e apologéticos – comentadores. A essa influência marcante – antípoda, em especial, do que se faz dominantemente nos Estados Unidos em termos de filosofia – Roberto Mangabeira Unger, entretanto, felizmente, escapou. Seria plausível fantasiar que ele, em vez disso, foi de algum modo marcado pelo viés nacionalizante e ensaístico, mais autônomo, que a elaboração brasileira de pensamento conheceu, no Rio de Janeiro, na década de 1960, quando ele lá estava. E imaginar que seu ‘neodesenvolvimentismo romântico’, democrático-radical, retoma criticamente o marco hegeliano-sartreano (também marxiano), de esquerda, do pensamento de, por exemplo, um Álvaro Vieira Pinto. Pois algo disso encontra-se sem dúvida em The Self Awakened: Pragmatism Unbound – ao mesmo tempo uma súmula, uma introdução e um coroamento da extensa e admirável obra de Mangabeira Unger. É possivelmente o mais filosófico de seus trabalhos, mas é também um texto programático radicalmente inovador, entre ensaio e manifesto mobilizador, enfaticamente marcado por seu tom visionário, romântico e assertivo. “Pragmatismo liberto” (unbound) evoca, não por acaso, Prometeu liberto, desacorrentado, sem peias, o rebelde herói mitológico, emancipador, dos românticos do século XIX europeu, de Goethe, Byron, Sheley, Wagner – e Marx.

3 – Pragmatismo Jovem-Hegeliano e Rebeldia Romântico-Prometeica

No Self Awekened, Unger começa por desenvolver, como suporte de sua proposta política e também existencial, o que ele chama apropriadamente de pragmatismo radical, ou radicalizado, liberto de possíveis limitações “metafísicas” e “naturalistas” remanescentes em Charles Peirce, William James e John Dewey, pragmatistas originários, clássicos. E oposto às suas emasculadas (moderadas) versões contemporâneas, neo-pragmatistas (imagino que, para Unger, bem representadas por Richard Rorty, Hilary Putnam ou Jürgen Habermas). Mangabeira Unger mostra preocupação por estar assumindo a posição filosófica mais própria da superpotência hegemônica (os EUA), um escrúpulo que julgo, entretanto, desnecessário. Primeiro porque, no establishment filosófico estadunidense, a “doutrina oficial” tem sido antes, de há muito tempo, dominantemente, uma ‘tecnicista’ filosofia analítica (hoje em franca revisão e recuo). Segundo porque pessoas informadas já sabem que o pragmatismo norte-americano tem sido, na verdade, historicamente, uma posição filosófica progressista e generosa, predominantemente de esquerda, por vezes expressamente anti-imperialista. E, por fim, porque se trata de um desenvolvimento filosófico dominantemente norte-americano mas muito influenciado, desde o começo, pelo pensamento “continental”, particularmente de Kant e Hegel. E de uma elaboração de pensamento que encontrou expressões semelhantes também fora dos EUA (v.g. na Inglaterra, na França e na Itália), sendo pragmatista hoje a posição assumida de notáveis filósofos críticos, não americanos, como por exemplo Jürgen Habermas. Aliás, pode-se hoje em dia encontrar uma inflexão pragmatista em parte significativa da filosofia contemporânea, seja política ou da ciência, etc., inclusive ainda no pensamento de seus mais notáveis expoentes, como Heidegger ou Wittgenstein.

Em comparação com outras formulações contemporâneas do pragmatismo, a de Roberto Unger – original, nada ortodoxa – de fato recupera e radicaliza seu sentido prático-criador, futurista, e sua vocação democrática-experimentalista (assumidos entre nós, na educação, pelo pragmatista Anísio Teixeira, e, nos Estados Unidos, predominantemente por Dewey). Ao mesmo tempo, para isso, a elaboração de Unger, a meu ver, acentua frutiferamente a filiação hegeliana que o pragmatismo em boa medida já traz, mais claramente em John Dewey e George Mead. Com uma filosofia que incorpora ingredientes encontráveis em hegelianos de esquerda como Karl Marx, Max Stirner e Bruno Bauer, e que comporta ainda ressonâncias nietzschianas, é curioso ver Unger retomar no século XXI a noção hegeliana de autoconsciência bem como a dialética dissolvedora/reapropriadora que opõe a livre iniciativa prático-transformativa dos homens às estruturas “naturalizadas” e “congeladas” – da sociedade, da política e do pensamento, até aqui. De qualquer modo, para seus propósitos teóricos e práticos, Unger foi mesmo bater na porta filosófica certa, conseguindo, por aquela via jovem hegeliana, e pragmatista, renovar, à sua maneira, as opções e concepções da esquerda, há tempos paralisada entre democracia liberal tradicional e marxismo como “linguagem única” da crítica e da mudança. O próprio Unger reconhece que os temas do Self Awakened poderiam ser igualmente desenvolvidos a partir de Hegel, do romantismo filosófico e do historicismo, em lugar do pragmatismo (p. 28). Em What Should the Left Propose (O Que a Esquerda Deve Propor), ele admite que a maior influência sobre seu corpo de pensamento – “com exceção da influência ainda maior do cristianismo” – é da “filosofia alemã” (p. 109). E seu muito filosófico Passion, an Essay on Personality (Paixão, um Ensaio sobre a Personalidade), anterior, tem como principal preocupação “oferecer uma crítica e uma reconsideração modernistas da imagem cristã-romântica do homem, que forma a tradição central do pensamento do Ocidente acerca da natureza humana” (p. VII). No recente Self Awakened, entretanto, Unger vai francamente preferir as fórmulas – ou o “rótulo” – do pragmatismo, porque, segundo ele, este “representa a filosofia atualmente mais viva”, “não entre professores universitários, mas no mundo” (p. 28). E é ao mesmo tempo uma corrente de pensamento que propõe uma “radical mudança de rumo de doutrinas e métodos (…), e de formas amplas de consciência que se têm espalhado pelo mundo” (p. 28-29).

Ao fim e ao cabo, embora The Self Awakened não mencione expressamente o Brasil nem qualquer outro país em particular, ainda assim pode mesmo ser tomado como uma elaboração filosófica que corresponde ao “romance de um futuro nacional”, aquele das preocupações de Unger. Uma elaboração filosófica com pontos de contato com o que tenho defendido como “poética pragmática” (pela celebração da ação humana como criação sensível), e um exemplo do gênero de filosofia que chamo de “filosofia como coisa civil” (pelo seu tipo de envolvimento, não “sempiterno”, com o mundo, o tempo, o contexto). Certamente pode-se questionar o Self Awakened por assertivo demais (aparentemente dialógico de menos), por um tanto esquemático (o que pode ser justificado num manifesto), e mesmo, superficialmente, por juvenilmente romântico (o que poderia ser politicamente complicado). Discutir particularmente esse livro de Mangabeira Unger, entretanto, é uma tarefa que promete, de qualquer forma, resultado bom e certo para a comunidade filosófica brasileira, muitas vezes exageradamente “histórico-exegética” ou até, no limite, “escolástico-academicista” (tudo que o Self Awakened não é). Tarefa promissora porque, corroborando-o ou criticando-o (e para ambas as coisas não faltam motivos), alguns de nós poderíamos até, ao fazê-lo, acabar de fato nos apanhando – surpresos – fazendo filosofia. Como Unger.

Referências bibliográficas:

ANDERSON, Perry. Afinidades Seletivas. São Paulo: Boitempo Editorial, 2002.

HAWTHORN, Geoffrey. “Practical Reason and Social Democracy”. In Northwestern University Law Review, Summer 1987, 81 Nw. U.L. Rev. 766.

RORTY, Richard. “Unger, Castoriadis, and the romance of a national future”. In RORTY, R. Essays on Heidegger and Others. Cambridge: Cambridge University Press, 1991.

SOUZA, José Crisóstomo de. Ascensão e Queda do Sujeito no Movimento Jovem Hegeliano. Salvador: Ed. UFBA, 1992.

SOUZA, José Crisóstomo de. “A Filosofia como Coisa Civil”. In SOUZA, J.C. de (org.), A Filosofia entre Nós. Ijuí: Ed. Unijuí, 2005.

SOUZA, José Crisóstomo de (org). Filosofia, Racionalidade, Democracia: Os Debates Rorty-Habermas. São Paulo: Ed. Unesp, 2005.

UNGER, Roberto Mangabeira. Knowledge and Politics. New York: The Free Press, 1975

UNGER, R. M. O Que a Esquerda Deve Propor. Rio de Janeiro: Ed. Civilização Brasileira, 2008

UNGER, R. M. Passion: an Essay on Personality. New York: The Free Press, 1986.

UNGER, R. M. Politics: A Work in Constructive Social Theory (3 vols.) Cambridge: Cambridge University Press, 1987.UNGER, R. M. The Self Awakened: Pragmatism Unbound. Cambridge: Harvard University Press, 2007. Edição em língua espanhola: El Despertar del Indivíduo. Imaginación y Esperanza. México: Ed. Fondo de Cultura Económica, 2009.

UNGER, R. M. The Critical Legal Studies Movement. Cambridge: Harvard University Press, 1986.

WELLMER, Albrecht. “Pragmatismo sem Idéias Reguladoras”. In Jürgen Habermas 70 Anos, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1999.

Veja aqui um breve relato de Roberto Mangabeira Unger sobre as raízes de seu pensamento filosófico: