Sobre Pragmatismo. Habermas

(Respostas de Habermas a perguntas formuladas por Mitchell Aboulafia)

M.A. – Quando você encontrou pela primeira vez os pensadores chamados pragmatistas?

J.H. – Quando era um estudante secundário, interessei-me por filosofia. Durante o pós-guerra (de 1945 a 1949, quando terminei o colegial), era muito difícil comprar livros. Eu dependia basicamente de três fontes – a bem fornida biblioteca de meu tio, professor de filosofia; o estoque bem ordinário da livraria comunista, e as estantes não muito opulentas de meus pais. Foi aí que encontrei, entre os livros de meu pai, do tempo de seus estudos, uma introdução à filosofia, de um filósofo vienense que foi, como

William James
William James

soube mais tarde, o primeiro tradutor de William James. Seu nome era Wilhelm Jerusalem. Ele não só dedicou todo o § 26 a uma explicação da “máxima pragmatista” de Charles Sanders Peirce,

Charles Sanders Peirce
Charles Sanders Peirce

 mas, por todo o livro, continuou referindo-se a William James, John Dewey e F.C.S. Schiller, lado a lado com Ernst Mach. Essa abordagem naturalista, de uma concepção evolucionista da mente e da cultura, me parecia combinar com o Materialismo Histórico, de Marx e Engels, cujas pequenas brochuras li mais ou menos na mesma época. Eu havia me esquecido desse primeiro encontro com o pragmatismo, até recentemente, quando me lembrei de Jerusalem na ocasião em que fazia algumas anotações autobiográficas. Procurei seu livro nas minhas prateleiras e achei-o no lugar certo – no meio da literatura secundária sobre a coleção de autores pragmatistas, que tem continuado a crescer desde que comprei a edição de sete volumes de Peirce, no começo dos anos 60.

M.A. – Algum de seus professores ou colegas tinha conhecimento do pragmatismo?

J.H. – Tanto quanto me lembro, nenhum de meus professores de filosofia, durante meus estudos universitários, entre 1949 e 1954, jamais mencionou, quer a escola quer algum de seus membros proeminentes. Mas, durante meus estudos, encontrei a sociologia do conhecimento de Max Scheller, publicada originalmente em 1925. O ensaio “Erkenntnis und Arbeit. Eine Studie über Wert und Grenzen des pargmatischen Motivs in der Erkenntnis der Welt” contém uma discussão e uma crítica completas da epistemologia de William James. No mesmo contexto, Scheller introduziu sua famosa classificação tripartite das “formas de conhecimento”: Erlösungs-, Bildungs-, Leistungswissen. Como se pode perceber, da concepção de “interesses orientadores de conhecimento”, que Apel e eu desenvolvemos durante os anos 1960, aquele encontro inicial com Scheller deixou marcas profundas (ainda que eu tenha deixado de fazer uma referência explícita a Scheller em Conhecimento e Interesse, que eu deveria ter feito). Foi Apel quem dirigiu minha atenção para Peirce, no início dos anos 1960. Primeiro, li aqueles bem conhecidos ensaios epistemológicos de seu período intermediário. O capítulo Peirce, em Conhecimento e Interesse, resultou de uma conferência que apresentei em Heidelberg, em 1963. Um pouco antes, o Reunião da Filosofia, de Morton White, garantiu-me uma perspectiva a partir da qual eu podia defender o continuum racional entre proposições descritivas, avaliativas e normativas, contra Popper, com cuja teoria eu estava pelejando durante a chamada “querela do positivismo”. De Morton White, veio-me a referência à Lógica da Descoberta, de Dewey. Um pouco mais tarde, eu trouxe para casa mais dois livros de Dewey, de minha primeira visita aos EUA: A Busca da Certeza e o Reconstrução em Filosofia. Depois de me mudar de Heidelberg para Frankfurt, comecei a ensinar A Mente, o Eu e a Sociedade, de G.H. Mead, nas minhas aulas de sociologia. (Por recomendação minha, o livro foi traduzido e publicado pela Suhrkamp, em 1968). Por essa época, eu havia provavelmente me tornado mais familiarizado, e também mais acorde com o pragmatismo, do que a maioria de meus colegas americanos. Fiquei, de todo modo, surpreso, por suas reações, quando visitei universidades americanas em 1965 – Ann Arbor, Berkeley e algumas outras. Os departamentos de filosofia ainda estavam sob o domínio, seja da teoria da ciência de Carnap, seja da fenomenologia lingüística de Wittgenstein. Quando mencionava o pragmatismo como “a” grande tradição americana, sempre me deparava com um dar de ombros. Peirce era visto como, no melhor dos casos, “estranho”, Dewey como um pensador “impreciso”. Dick [Richard] Bernstein, que em 1972 me convidou para dar uma conferência no Harverford College,foi o primeiro pragmatista “de verdade” que conheci, e aquele que desde então tem continuado a me empurrar na direção de uma destranscendentalização mais intensa de Kant. Dick [Richard] Rorty deu-me o mesmo conselho, naturalmente, quando vim para seu seminário, em Princeton, dois anos depois. Além deles dois, e também com uma educação acadêmica em Chicago, Larry Kohlberg tornou-se um outro amigo, que vim a admirar como uma impressionante encarnação do espírito pragmatista.

M.A. – O que você achou de mais valioso na tradição pragmática, para seu próprio trabalho?

J.H. – O impacto no meu desenvolvimento intelectual foi triplo. Na epistemologia – e na teoria da verdade -, Peirce teve a influência mais forte, desde minha conferência inaugural de Conhecimento e Interesse (1965), para a frente, até Verdade e Justificação (1999). Desde que Apel e eu havíamos ficado em contato, foi sua interpretação que primeiro guiou minha recepção. Nossa familiaridade inicial com a, e nosso aprendizado da antropologia filosófica e da analítica do Dasein em Ser e Tempo (a análise, de Heidegger, do “ser no mundo”, em particular) tinham-nos preparado para uma epistemologia pragmatista. O estilo de análise de Peirce era mais atual e, por isso, mais adequado a uma defesa das relações internas entre formas de conhecimento e tipos de ação, em comparação com a visão limitada dos empiristas lógicos e de seu foco na dimensão semântica. Para Peirce, a razão e o entendimento estavam desde o começo encarnados nas atividades de pesquisa de uma comunidade de investigadores. Nós percebemos a abordagem pragmatista de Peirce como uma promessa de salvação de insights kantianos, numa veia destranscendentalizada, mas analítica. Tal promessa também se aplica, para mim mais do que para Apel, a uma reconciliação entre Kant e Darwin, entre uma perspectiva transcendental e uma perspectiva evolucionista. Meus estudos da filosofia da natureza de Schelling e minha recepção de Marx haviam-me tornado mais aberto a um naturalismo “soft”, não-cientificista. A segunda influência, quase tão forte quanto a de Peirce, veio da teoria da interação social de Mead. A estrutura conceitual do que seus estudantes mais tarde chamariam de Interacionismo Simbólico serviu-me de guia na direção de uma Teoria da Ação Comunicativa, que deveria conectar o marxismo hegeliano da Teoria Social Crítica, tanto com a metodologia da tradição hermenêutica (de Schleiermacher e Dilthey, até Gadamer) como com uma concepção dialógica da linguagem e da comunicação, que Apel e eu aprendêramos inicialmente com Wilhelm von Humbolt. Foi só mais tarde que também descobri as implicações éticas da mútua “tomada-de-perspectiva”, de Mead – uma elaboração dinâmica na direção das “perspectivas de descentramento” de Piaget. Essa visão também evocava a teoria ética já implícita nas análises, de Humbolt, dos papéis de primeira e segunda pessoas, dos participantes de um diálogo. Foi uma feliz coincidência histórica – para nós, jovens alemães, da primeira geração de estudantes do pós-guerra – que correntes de “nossas” fontes no Idealismo Alemão (incluindo Humbolt e Marx) – das quais os próprios grandes pragmatistas haviam uma vez decolado – estavam de novo fluindo junto com o que descobrimos serem os resultados de um encontro americano-alemão, anterior, extraordinariamente produtivo. Como se poderia esperar, a terceira influência do pragmatismo teria de estar, obviamente, no campo da teoria política. E é verdade que fui atraído com muita força para a mentalidade progressista de um modernismo de inspiração comunitarista, expresso de modo tão belo no pathos dos grandes hinos de Walt Whitman. Lembremos também das palavras de William James, inscritas no James Hall, em Harvard: “A comunidade fica estagnada sem o impulso do indivíduo, o impulso se extingue sem a empatia da comunidade.” A atitude anti-elitista, democrática e inteiramente igualitarista, que molda e impregna o trabalho de todos os pragmatistas, foi muito mais importante do que os conteúdos de qualquer ensaio particular sobre política ou democracia. Desde o estudo de Robert B. Westbrook, John Dewey e a Democracia Americana (1991), todo mundo pensa em Dewey também como um grande teórico político. E, com seu O Público e seus Problemas (1927), Dewey poderia ter sido uma fonte importante do meu A Transformação Estrutural da Esfera Pública (1962). Na verdade, não o foi. Deparei-me com os escritos de Dewey só depois de terminar esse primeiro livro. E, mesmo depois disso, não peguei seus escritos políticos e éticos por várias décadas. Naturalizando Hegel, Dewey permaneceu para mim mais como um epistemologista de inclinação antropológica do que como um pensador político. Ele me aparecia como o filósofo que antecipou importantes argumentos, tanto de O Ser Humano, de Arnold Gehlen, como de A Filosofia e o Espelho da Natureza, de Rorty. Em algum momento do fim dos anos 1980, talvez, descobri retrospectivamente a convergência de nossas posições acerca da esfera pública, discursivamente estruturada, como um requisito para a democracia. Essa circunstância não diminui, por certo, o papel político que o pragmatismo tem tido na formação de minhas idéias de democracia e de estado constitucional. O pragmatismo constitui, ao lado de Marx e de Kierkegaard, a terceira tradição jovem hegeliana, e a única que desenvolve convincentemente o espírito liberal da democracia radical.

M.A. – Quais são os pontos mais fortes do pragmatismo?

J.H. – A combinação de falibilismo com anti-ceticismo, e uma abordagem naturalista da mente humana e da cultura, que se recusa a ceder a qualquer tipo de cientificismo.

M.A. – Quais são suas maiores fraquezas?

J.H. – A mensagem de que apenas as diferenças que fazem uma diferença deveriam ser levadas em conta é freqüentemente tomada, enganosamente, como uma recomendação de borrar até mesmo distinções relevantes. Quase com a mesma freqüência, a desconfiança anti-platônica do uso ilegítimo de idéias abstratas é equivocadamente entendida como uma recusa da força transcendente e do significado incondicional das alegações de verdade. Há uma corrente empirista subjacente no pensamento de Dewey e uma corrente emotivista subjacente no pensamento de James. Ambas ameaçam a herança kantiana, que é salva, em tradução pragmatista, por Peirce – e, a propósito, por Robert Brandom. Meu amigo Dick Rorty é muito kantiano, na seriedade de sua ambição de transformar essas fraquezas em pontos fortes.

M.A. – O que você considera como a contribuição mais duradoura do pragmatismo para a tradição da filosofia e do pensamento social ocidentais?

J.H. – Os pragmatistas teriam rejeitado uma pergunta que sugere que cada grande filósofo realiza um pensamento, próprio, característico. Em contraste com a falsa pretensão heideggeriana, Peirce e Royce, James, Mead e Dewey, sentiram a obrigação de resolver problemas, um a um, ali no contexto local onde os confrontavam. Mas, igualmente, eles teriam objetado contra uma generalização falsa dessa atitude honesta, em termos de um contextualismo que aplaude o provincianismo local de nossas capacidades de solucionar problemas. Juntamente com Marx e Kierkegaard, de novo, o pragmatismo emerge como a única abordagem que abraça a modernidade, em suas formas mais radicais, e reconhece suas contingências, sem sacrificar o propósito mesmo da filosofia ocidental – o de experimentar explicações sobre quem somos e quem poderíamos ser, como indivíduos, como membros de nossas comunidades, e como pessoas überhaupt [em geral], isto é, como seres humanos.

(Extraído do livro Filosofia, Racionalidade, Democracia, Os debates Rorty & Habermas, Editado e organizado por Souza, Crisóstomo de. Unesp, 2005)

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